domingo, 15 de julho de 2018

Amálgama






















Estou aqui na frente da sua casa. Tá tudo escuro, só ouço a cachorra latindo. 
Você passou o endereço certo?
Mandei o endereço de chiste dizendo "me responde o email me beijando"
Oferecida.
Ele disse. 
Pois tudo o que ofereço é: meu calor, meu endereço... A minha vitrolinha encefálica já pôs na agulha. 
O que é a vida sem uma boa trilha sonora?
A arte existe porque a vida não basta, bem disse o poeta, aquele sujo maravilhoso.
Dei um salto corri pra sacada.
Qual a cor da fachada?
Cinza com a janela vermelha.
Claro que era mentira.
Ele viu no instagram.
Eu numa tarde, só de camiseta, poesia e café na sacada, o tempo cálido, uma luz de sol resplandecendo em meu corpo sem aquecer, a cachorra aborrecida deitada do lado, cansada de me chamar pra brincar de novo, de novo e de novo.
Dóroti.
Peguei na rua havia 9 anos. 
Embora idosa, seguia alegre e brincalhona. 
Também, criada a leite de pera e ovomaltine, era uma filha mimada que não sabia o que era limite. Até que eu fizesse um som gutural muito meu, sinônimo claro de irritação, que fazia ela, inconformada, deitar a certa distância com expressão evidente de insatisfação.
Suspirava e se resignava.
Voltei pra dentro como a criança que teve o doce roubado.
Desculpe a brincadeira.
Morangos, uvas, vinhos, conhaque, queijo brie, e a caixinha de chás pro café da manhã sobre o aparador da cozinha.
Vou ter que tomar o vinho sozinha?
Assim você judia de mim.
Quisera eu judiar de você. A noite inteira.
Me dá meia hora?
E o que mais você quiser.
Armei a rede na sacada, coloquei a mesa de centro próxima, trouxe o vinho, as taças, as frutas e o queijo, espalhei velas, acendi as luminárias na casa, e fui procurar a playlist:
YouTube;
Playlists;
Verde.
Estavam lá, como flores em um canteiro.
Esperando.
Noites de Madagascar, quantas estrelas vi, ali, em seu olhar.
Virei as varetas dos aromatizadores.
Rescendeu o aroma adocicado, parecido com o perfume que eu usava.
Localizador.
Descendo a Rebouças.
Ah, Tecnologia, sua linda.
Trago seu amado em 10 minutos.
Mais precisa que amarração de passeio público.
Banho quente pra relaxar.
Pés descalços.
Cabelo preso num coque alto.
Vestido vinho. 
Costas à mostra.
Barulho de carro.
Coração na mão, atiro a chave.
É a maior.
Abro a porta e fico no topo da escada vendo ele subir.
Roupa preta, jaqueta de couro.
Barba e cabelos cerrados.
Aquele sorriso com os dois dentes da frente despontando. Lindo.
Os olhos de um verde penumbra com semblante bondoso, mas que por um risco se acendia numa fúria-esmeralda que me deixava louca.
Dodó correu pra receber.
Um carinho e tá tudo certo.
Puxou a dona.
Santé.
Ele olha ao redor e ri.
Foi bom que te dei tempo pra preparar a cena. 
Ele diz degustando meu vinho predileto que aguardava a 5 anos o momento exato.
O enredo pode até ser novela mexicana, mas pro cenário prefiro nouvelle vague. 
E delato meu amor pelo cinema francês num sorriso sem jeito, enquanto ele me puxa pela cintura e me beija a nuca, roçando a barba, e me deixando da cor do meu vestido.
Jaqueta jogada no sofá.
A rede nos enlaça.
Em minutos tudo no chão.
Deus nos acuda, Pablo Neruda.
A luz das velas crepitavam no rosto dele, criando um chiaroscuro, fazendo com que tudo aquilo ganhasse um ar idílico.
O que você quer de mim?
Eu quero fazer amor com você, seja lá o que isso for. Mas eu quero tântrico.
O beijo dele já era todo um coito.
E eu gemia como uma gata no cio com uma mão na nuca e a outra na cabeça dele. Ambas.
Horas.
Eu não vou aguentar.
Tudo pulsava.
A gente começou a respirar junto, e até a respiração se tornou volúpia.
Em pelo naquela rede, o céu continha tanta estrela que não dava pra contar. Parecia que o universo, curioso, parou ali pra contemplar duas pessoas a se amalgamar.
Não posso mais.
Vamos pra dentro, senão vou acordar o bairro.
Ele me pega no colo e me deposita sereno na cama. 
Portas fechadas.
Os olhos vidrados nele.
Branquinha, a sua pele é tão macia.
Ele começa a me morder com uma ternura lasciva, e enlouquecida imploro pra ele penetrar.
Você disse que queria tântrico.
Mudei de ideia.
Não pode mudar de ideia.
Subo em cima dele, mãos cravadas nos seios, cavalgo violenta. 
O desejo é primo da ira.
Adoro ele me chupando. Não tiro os olhos do seu rosto inebriado, sua língua deslizando em mim.
Você é doce.
Ele ri e entra em ação.
Quase me arranca os cabelos.
Com força.
Eu gosto assim, com força.
Não paro de falar absurdos no ouvido dele.
Quero ver tua carinha safada enquanto goza.
Não precisou mais, logo um canto inaudito ecoou.
Tudo parou.
Seria aquilo amor?
Ele me acorda beijando meu dorso.
Que gostoso.
Me viro sorrindo as 6 da matina.
Preciso ir. Entro cedo hoje.
Ele está pronto.
Deslizo pelos pelos dele.
Que cheiroso.
É o seu cheiro.
Não é não.
Ele me olha debaixo do cobertor.
Acho que um dia não tem problema se atrasar.
Ele diz mergulhando os dedos no meu cabelo.
Acho ótimo.
Respondo num beijo profundo.
Tipo o céu e o mar desencontra, mas se tromba lá na frente.


Pintura: Egon Schiele - O abraço (1917)

terça-feira, 6 de junho de 2017

Missiva




Eugênio,
Você foi o meu
preferido
O mais lindo
O melhor
em tudo
Por você
sofri
chorei
orei
esperei
e cansei.
Você não quis
Agora vou ali
Ser feliz.


Pintura: Pablo Picasso - Femme ecrivant (Marie-Theresse Walter) 1934



terça-feira, 21 de março de 2017

Lamentação




No canto
na beira do caos
rodeada
eu me sentia rodeada
era preciso adentrar o barco
ir à linha do horizonte
resgatar
regressar
algo me impedia
letargia
os ponteiros do relógio
não paravam
o sol não estanca
ao meio dia
por uma ordem
estancaria
como encontrar com
o Rei?
adentrar o barco
ir à linha do horizonte
resgatar
regressar
não podia
apatia
a estrada estava
escura
não pare
uma luz logo atrás
iluminava o caminho
vem vindo um carro
não vinha
a luz iluminava
o caminho
continue
comer o pão
beber a água
longa jornada
não pare
eu disse
a mim
e quis
ouvir
coma o pão
beba a água
longa é a sua
jornada
não pare
eu ouvi
longe
cabelo ao vento
longe
pés em movimento
onde estará o
barco?
ouvi um canto
meu lamento



Pintura: Claude Monet - Impression, soleil levant (1872)


terça-feira, 21 de fevereiro de 2017

Enredo de carnaval: nem commedia nem arte



Ele tinha uma pele
morena
que cheirava
uma mistura
de almíscar
com avelã

E toda vez que eu ficava
frente a frente
com aqueles olhinhos
miúdos
e aquela boca larga

Eu me desfazia
de todas as minhas
promessas
de amor próprio
e o beijava

E me enroscava

Enterrava meus dedos
na sua nuca
e entranhava
meu rosto
em seu rosto
até roubar
seu perfume

Minha vontade
era arranhar
e morder
suas orelhas
e seu pescoço

Mas era sempre
hora de ir

E eu podia me banhar
o quanto fosse
que ainda sentia
aquele cheiro doce

E no meio da noite
eu acordava
Sobressaltada
Procurando por ele

Como se algum dia
ele estivesse estado
ali
a meu lado

Ah, que infeliz
era eu
que por causa dele
seria capaz
de recender amor
noite e dia

e viveria
em harmonia
cantarolando
todo dia:

“Ai, Ioiô...
Eu nasci pra sofrer
Fui oiá pra você
Meu zóinho fechô...”

Com mais fidélis
Que Gal
Bethânia
Zélia
Bruna
E até Elis

Mas ele não quis.



Pintura: Di Cavalcanti - Pierret (1922)


sexta-feira, 3 de fevereiro de 2017

Calvário Particular



No es que muera de amor, muero de ti.
(Jaime Sabines)


O calor no local era sufocante, e ela estava quase arrependida de ter escolhido aquela saia de couro justa ao corpo até os joelhos, mas a blusa branca de tecido fino a salvara, e por sorte, antes de sair ela jogou na bolsa um amarrador de cabelo.
Não era possível ficar com o cabelo solto, e a nuca à mostra acabou sendo um grande alívio.
Ela se sentia linda, como poucas vezes se sentiu na vida.
Com uma sandália vermelha de salto, ela transitava no salão lotado e úmido por conta dos suores e dos ventiladores que jogavam água na multidão, sem se preocupar com nada do que havia ao redor.
Ela só se preocupava em estar com os amigos, comprar caipirinhas geladas, e curtir o show.
Vez ou outra tinha que desviar de algum desavisado que vinha de encontro a ela tentando beijá-la. Ela havia levado bolo pra festa, como diziam, há muito tempo atrás.
Sem nem perceber, ela cantava todas as canções.
Não era fã da banda, mas conhecia de cor sem nunca ter comprado um cd, ou colocado pra tocar no youtube.
Era desses mistérios do inconsciente.
E no meio da multidão, seu coração estava alegre, sereno, cheio de vida.
O gelo dos drinks ela usava para aplacar o calor, deslizando pelo pescoço e nuca, não só dela, mas aproveitava que ele estava logo atrás, e passa nele também.
O gelo derretia na nuca dele e fazia o calor exalar o odor da sua pele morena.
E o cheiro dele a inebriava.
A cada distração dele, ou ida ao bar para pegar mais caipirinhas, os amigos diziam “nossa, que amigo! Tá pegando? Já pegou? Vai pegar, né?”.
Ela ria e desconversava, como era de praxe.
Mas era clara sua vontade de comer ao menos a cereja: “é um boy delícia... todo mundo quer...”.
Ele atrás dela fazia com que ela se sentisse segura pra dançar solta e rebolante.
Não precisava se preocupar, ela pensava, com assédio de estranhos tendo ele por perto.
Então ela dançou, com a alma, com o corpo, os poros, os sentidos... e assim, quase sem querer, ia trombando nele, encostando nele, enroscando nele... e a cada toque, a cada contato, seu corpo estremecia, e ela o procurava, mesmo ele estando tão perto. Até que começou o som do teclado, e iniciou a romântica da noite.
Era uma música linda, que fala de espera e solidão, de um eu lírico que espera o amado e pede pra que ele não demore.
E ela queria virar pra trás e cantar pra ele. Porque naquele momento ela percebeu que aquele eu lírico era ela.
Mas não pode.
Ela fez um esforço brutal e se virou pra trás, e olhou pra ele.
Mas não era capaz.
Seria piegas.
E ela só podia deixar escapar sua pieguice nos poemas. Na vida o orgulho sempre fala mais alto.
Mas ela o olhou.
E aquilo que a razão não deixou a boca dizer, o corpo disse.
Ela o beijou.
E ela o beijou como se aquela fosse a única coisa que ela queria fazer na vida, porque aquela era a única coisa que ela queria fazer na vida.
A música acabou e eles continuaram se beijando.
Outra música começou, e eles se beijavam.
E começava e terminava uma música atrás da outra, e eles mal paravam pra aplaudir, como se estivessem ouvindo ainda.
Talvez estivessem.
Mas nunca será uma certeza.
Até que ela percebeu as mãos voluptuosas dele, deslizando pelo seu corpo.
Elas apalpavam, mas não acariciavam.
Buscavam, mas não ansiavam.
E aquilo começou a constrangê-la.
Ela passou a perceber as pessoas ao redor.
O rapaz solitário logo atrás deles, que se excitava vendo, e procurando disfarçar, sem mais poder.
O casal, do outro lado, que, nitidamente, de tantos anos juntos, já nem tinham mais vontade de se beijar, o que fazia com que o rapaz olhasse aquilo com uma certa inveja saudosa.
Mas essa inveja logo foi esvaída, porque a maneira como ele a tocava era tão lasciva, que se tornava vexatória.
E ela, mesmo se sentindo imensamente desrespeitada, não conseguia reverter aquela situação.
Afinal, ela mesma havia iniciado.
Mas não era o que ela queria.
Não era o que ela queria dele.
Ele a estava tratando publicamente como uma qualquer.
E naquele instante, seu coração se encheu de uma mágoa tão profunda, que ela quis sumir.
Sendo impossível.
Então se afastou.
Foi dançar com outro amigo pra se desfazer daquilo tudo e se recompor.
Era humilhante pra ela doar tanto amor e colher só malícia.
E ainda assim, ela olhava pra ele, e seu coração se enchia de uma ternura que parecia que não teria fim.
E no meio daquele turbilhão de sentimentos ela se esqueceu do seu limite para bebida.
Acabou o show.
Ela sentiu a vodka zunindo em suas veias.
Era tarde.
Saíram todos alegres.
Ela com um buraco negro no peito.
Caçou conversa pra disfarçar.
Quando viu, estava abraçada com ele.
Zonza.
Se lembrou do vexame.
Tentou desabraçar.
Não era possível andar.
Abraçou de novo.
Entraram no carro.
Ela tirou o sapato.
Olhou pra ele.
Esqueceu de tudo e o beijou.
O beijou até em casa.
Fez juradas de amor.
Pediu em namoro.
Ouviu um não.
Dois.
Três.
Ah, os limites.
Ela não tinha.
Nunca teve.
E depois de tanta vodka, não teria jamais.
Na porta de casa o golpe final: “foi tudo instinto”.
Ele já a havia humilhado na frente dos amigos dele. Na frente dos amigos dela. Em público.
Por que não faria estando a sós?
Um lixo. Ela era um lixo.
Desceu do carro ainda zonza.
Entrou em casa.
Tinha que passear com a cachorra.
Ficou com medo.
Não podia, tinha que passear com a pobrezinha.
Pediu pra ele voltar.
Estava com muito medo.
Pediu em vão.
Saiu pra passear com a cachorra.
Entrou em casa.
Sentou na cama.
Uma angustia tão grande.
Se lembrou de Bate-Seba
Se banhou para tirar de si toda aquela imundície.
Se vestiu como se fosse suas núpcias.
Se cobriu com seu véu.
E entrou no Templo.
Quando o Rei a viu, seu coração se comoveu com tanta força que imediatamente ele lhe estendeu o cetro.
Mas naquele mesmo instante a multidão do lado de fora entoou o segundo cântico de Salomão.
As palavras do cântico a puseram em tamanho desespero que seu lamento percorreu o terceiro céu, que era infinito.
E o Rei chorou.



Pintura: Edvard Munch - Madonna (Version from National Gallery of Norway - Oslo)


quinta-feira, 19 de janeiro de 2017

Extravagâncias





L'amore è quella cosa che tu sei da una parte, lui dall'altra, e gli sconosciuti si accorgono che vi amate. Chest'è. (Massimo Troisi)









quarta-feira, 11 de janeiro de 2017

Bem-me-quer-mal-me-quer



O quarto escuro
Só a luz do monitor
cortando o breu
Ao som de Rita Lee
Balando contigo
sem você saber
Nós
Você e eu
Poderíamos
ter um caso sério
Se você não fosse
tão cheio de mistério
Você pode até achar
que eu sou louca
Mas depois de um
vinho branco gelado
Eu juro que só vou
querer beijar sua boca
Deixa de bobeira e vem cá
Mas vem pra ficar
Ou me levar
pra Shangri-lá
Sem mais
laralara...


Arte: https://www.instagram.com/moomooi