sexta-feira, 3 de fevereiro de 2017

Calvário Particular



No es que muera de amor, muero de ti.
(Jaime Sabines)


O calor no local era sufocante, e ela estava quase arrependida de ter escolhido aquela saia de couro justa ao corpo até os joelhos, mas a blusa branca de tecido fino a salvara, e por sorte, antes de sair ela jogou na bolsa um amarrador de cabelo.
Não era possível ficar com o cabelo solto, e a nuca à mostra acabou sendo um grande alívio.
Ela se sentia linda, como poucas vezes se sentiu na vida.
Com uma sandália vermelha de salto, ela transitava no salão lotado e úmido por conta dos suores e dos ventiladores que jogavam água na multidão, sem se preocupar com nada do que havia ao redor.
Ela só se preocupava em estar com os amigos, comprar caipirinhas geladas, e curtir o show.
Vez ou outra tinha que desviar de algum desavisado que vinha de encontro a ela tentando beijá-la. Ela havia levado bolo pra festa, como diziam, há muito tempo atrás.
Sem nem perceber, ela cantava todas as canções.
Não era fã da banda, mas conhecia de cor sem nunca ter comprado um cd, ou colocado pra tocar no youtube.
Era desses mistérios do inconsciente.
E no meio da multidão, seu coração estava alegre, sereno, cheio de vida.
O gelo dos drinks ela usava para aplacar o calor, deslizando pelo pescoço e nuca, não só dela, mas aproveitava que ele estava logo atrás, e passa nele também.
O gelo derretia na nuca dele e fazia o calor exalar o odor da sua pele morena.
E o cheiro dele a inebriava.
A cada distração dele, ou ida ao bar para pegar mais caipirinhas, os amigos diziam “nossa, que amigo! Tá pegando? Já pegou? Vai pegar, né?”.
Ela ria e desconversava, como era de praxe.
Mas era clara sua vontade de comer ao menos a cereja: “é um boy delícia... todo mundo quer...”.
Ele atrás dela fazia com que ela se sentisse segura pra dançar solta e rebolante.
Não precisava se preocupar, ela pensava, com assédio de estranhos tendo ele por perto.
Então ela dançou, com a alma, com o corpo, os poros, os sentidos... e assim, quase sem querer, ia trombando nele, encostando nele, enroscando nele... e a cada toque, a cada contato, seu corpo estremecia, e ela o procurava, mesmo ele estando tão perto. Até que começou o som do teclado, e iniciou a romântica da noite.
Era uma música linda, que fala de espera e solidão, de um eu lírico que espera o amado e pede pra que ele não demore.
E ela queria virar pra trás e cantar pra ele. Porque naquele momento ela percebeu que aquele eu lírico era ela.
Mas não pode.
Ela fez um esforço brutal e se virou pra trás, e olhou pra ele.
Mas não era capaz.
Seria piegas.
E ela só podia deixar escapar sua pieguice nos poemas. Na vida o orgulho sempre fala mais alto.
Mas ela o olhou.
E aquilo que a razão não deixou a boca dizer, o corpo disse.
Ela o beijou.
E ela o beijou como se aquela fosse a única coisa que ela queria fazer na vida, porque aquela era a única coisa que ela queria fazer na vida.
A música acabou e eles continuaram se beijando.
Outra música começou, e eles se beijavam.
E começava e terminava uma música atrás da outra, e eles mal paravam pra aplaudir, como se estivessem ouvindo ainda.
Talvez estivessem.
Mas nunca será uma certeza.
Até que ela percebeu as mãos voluptuosas dele, deslizando pelo seu corpo.
Elas apalpavam, mas não acariciavam.
Buscavam, mas não ansiavam.
E aquilo começou a constrangê-la.
Ela passou a perceber as pessoas ao redor.
O rapaz solitário logo atrás deles, que se excitava vendo, e procurando disfarçar, sem mais poder.
O casal, do outro lado, que, nitidamente, de tantos anos juntos, já nem tinham mais vontade de se beijar, o que fazia com que o rapaz olhasse aquilo com uma certa inveja saudosa.
Mas essa inveja logo foi esvaída, porque a maneira como ele a tocava era tão lasciva, que se tornava vexatória.
E ela, mesmo se sentindo imensamente desrespeitada, não conseguia reverter aquela situação.
Afinal, ela mesma havia iniciado.
Mas não era o que ela queria.
Não era o que ela queria dele.
Ele a estava tratando publicamente como uma qualquer.
E naquele instante, seu coração se encheu de uma mágoa tão profunda, que ela quis sumir.
Sendo impossível.
Então se afastou.
Foi dançar com outro amigo pra se desfazer daquilo tudo e se recompor.
Era humilhante pra ela doar tanto amor e colher só malícia.
E ainda assim, ela olhava pra ele, e seu coração se enchia de uma ternura que parecia que não teria fim.
E no meio daquele turbilhão de sentimentos ela se esqueceu do seu limite para bebida.
Acabou o show.
Ela sentiu a vodka zunindo em suas veias.
Era tarde.
Saíram todos alegres.
Ela com um buraco negro no peito.
Caçou conversa pra disfarçar.
Quando viu, estava abraçada com ele.
Zonza.
Se lembrou do vexame.
Tentou desabraçar.
Não era possível andar.
Abraçou de novo.
Entraram no carro.
Ela tirou o sapato.
Olhou pra ele.
Esqueceu de tudo e o beijou.
O beijou até em casa.
Fez juradas de amor.
Pediu em namoro.
Ouviu um não.
Dois.
Três.
Ah, os limites.
Ela não tinha.
Nunca teve.
E depois de tanta vodka, não teria jamais.
Na porta de casa o golpe final: “foi tudo instinto”.
Ele já a havia humilhado na frente dos amigos dele. Na frente dos amigos dela. Em público.
Por que não faria estando a sós?
Um lixo. Ela era um lixo.
Desceu do carro ainda zonza.
Entrou em casa.
Tinha que passear com a cachorra.
Ficou com medo.
Não podia, tinha que passear com a pobrezinha.
Pediu pra ele voltar.
Estava com muito medo.
Pediu em vão.
Saiu pra passear com a cachorra.
Entrou em casa.
Sentou na cama.
Uma angustia tão grande.
Se lembrou de Bate-Seba
Se banhou para tirar de si toda aquela imundície.
Se vestiu como se fosse suas núpcias.
Se cobriu com seu véu.
E entrou no Templo.
Quando o Rei a viu, seu coração se comoveu com tanta força que imediatamente ele lhe estendeu o cetro.
Mas naquele mesmo instante a multidão do lado de fora entoou o segundo cântico de Salomão.
As palavras do cântico a puseram em tamanho desespero que seu lamento percorreu o terceiro céu, que era infinito.
E o Rei chorou.



Pintura: Edvard Munch - Madonna (Version from National Gallery of Norway - Oslo)


Nenhum comentário:

Postar um comentário