quinta-feira, 9 de maio de 2013

O Salto


Deseo
Mire donde mire
Te veo
(Jorge Drexler - Deseo)

A conversa corria animada dentro do carro. Nós sempre fazemos com que seja interminável. Dylan no rádio nos entusiasmando ainda mais. Hurricane. A carona desceu. Mal notei. Pra mim só havíamos nós aquele tempo todo. E logo chegamos a minha rua. Ele, gentilmente, parou o carro bem próximo da escada e disse: pra você ter que andar o mínimo possível. O salto 15 dava razão a ele. E eu pensei: se eu tivesse tomado umas vodkinhas nem precisava. Quando tomo umas a mais fico adestrada em salto alto. Sou capaz de apostar corrida em cima de um salto 15. Uma vez pisei em falso, precisamente com aquela mesma bota. Minha prima viu de longe e disse: Meu Deus, a Anninha caiu! Quando o marido dela virou pra ver, eu já tinha me erguido. Fui até o chão, sem encostar, e subi, dando risada. Deus dá uma proteção a mais aos bêbados e as crianças. Só pode. Mas não era esse o caso, nesse dia. O carro parou. E eu precisava saltar. Coloquei a mão na maçaneta. Virei. Disse algum agradecimento seguido de um singelo beijo no rosto. Voltei pra porta. E saltei. Um milésimo de instante. Uma lembrança em câmera lenta. Virei. E a sensação me tomou por completo. Uma sensação incrivelmente indescritível. Os nervos afloraram. E eu chego a pensar que com ele foi o mesmo. Eu não queria mais saltar daquele carro. Eu queria saltar nele. Ele me olhou. Mas não pude olhá-lo. Eu sabia que se nossos olhos se cruzassem eu não sairia dali. Eu iria beijá-lo. Mas e depois? Como seria depois? Sempre o depois. Não cedi ao meu desejo, pelo depois. Mas o que ele iria pensar? Eu iria assustá-lo. Eu sei. Mas e daí? Assustaríamos-nos mutuamente. Porque eu me assustaria comigo mesma. Onde já se viu sair beijando a pessoa assim, do nada? E agora eu fico aqui alimentando neurose. É muita neurose pra pouca ação. Nenhuma ação. No caso. E foi isso. Desviei o olhar e saltei. Saltei do carro. Mas não saltei dele. Nem ele de mim.


(Pintura: Emiliano Di Cavalcanti - O Beijo)


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