domingo, 29 de julho de 2012

Cabelinho Crespo


Isso é história antiga, meio que já virou lenda, como todas as histórias contadas por mim.
Tudo parece uma grande mentira. Mas não é. Juro.
Fui parar na cidade de Ponta Grossa. Era fim de ano, época de vestibular. Tava lá por isso. Ia tentar uma vaga na estadual, curso de jornalismo, sabe lá Deus por que.
Meu pai me hospeda numa pensão familiar para moças.
Cheguei na hora do almoço que prontamente me foi servido.
Viro o arroz de um lado pro outro, ensaiando misturar com o feijão, quando de repente me deparo com um fio de cabelo: curto, grosso, enrolado.
Minha mente paralisa.
Retorno em segundos uns dois anos antes.
Eu, uma amiga e a tia dela. Nós na frente de um barzinho tomando uma cerveja. Era verão. A tia da minha amiga era hilária, contava sobre a pizza da nova pizzaria da cidade:
"Cheguei em casa e a pizza estava em cima da mesa, minha mãe me avisa: ninguém teve coragem de comer da pizza."
"Como assim ninguém teve coragem? O que tem a pizza?"
"Tem um fio de cabelo liso enorme no meio da pizza. Um nojo!"
"Mas que bobagem, nojo de cabelo, comprido ainda, se fosse curtinho, grosso e enroladinho ainda vá lá!"
Aquela história nunca saiu da minha cabeça. Concordei plenamente. Curto e enroladinho sim, seria o fim.
E era justamente aquilo que me deparava naquele momento.
E agora? O que fazer?
Foi quando me veio a luz: tem que ter uma negrinha nessa casa, pelamor de Deus!
Procurei desesperadamente com os olhos aquele ser que salvaria meu almoço.
Quando escuto a voz da dona da casa dizendo: Esta é fulana, meu braço direito.
Suspiro de alívio.
A fulana era uma mulatinha de cabelo crespo e bem curtinho, vinha fardada com um avental de cozinha.
Não, não era só o braço direito dos donos da pensão, alguns dias naquele lugar percebi que ela era o esquerdo também. Uma escrava alforriada, que permanece dormindo na dispensa por não ter pra onde ir. Os donos fingem que criaram como filha, mas se bobear não sabe ler nem escrever. No fim dos dias eu já tava quase me juntando com as amigas que fiz ali pra uma revolta por aquela pobre alma sem perspectiva de vida.
Sentimentos revolucionários a parte. Sorri condescendente para aquele cabelinho, retirei-o do meu prato e comi satisfeita meu almoço. Era curto, grosso e enroladinho. Mas era da cabeça da mulatinha. Benza Deus!

(Pintura: Di Cavalcanti - Mulata em rua vermelha)

sábado, 28 de julho de 2012

A maior declaração de amor


Dividiu o cabelo em duas partes. Começou a pentear de baixo pra cima, calmamente. Sempre teve cabelão. Um cabelo comprido, ondulado, castanho avermelhado. Mas só dá pra perceber que é avermelhado quando posto próximo a um cabelo castanho comum. A proximidade sempre revelando coisas. Já tava tão comprido que nem fazia ondas mais, só uns cachos nas pontas de vez em quando. Essa mania que cabelo tem de fazer o que quer e quando quer. Sempre mostrando quem é que manda. E ela penteava. Sem pressa. Sentada no colchão no chão. E ele a observava. Curioso.
Ele achava muito comprido. Talvez nem gostasse do cabelo dela. Mas não reclamava. Ele não era do tipo que reclamava das coisas. Dava idéias. Fazia comentários. Raros. Mas reclamar mesmo nunca reclamava de nada. Não tinha cabeça pra isso. Só olhava muito pra ela, principalmente enquanto conversavam. E conversavam muito. O tempo todo. Sobre tudo. Não se bajulavam. Não eram dados a declarações de amor rasgadas. Raramente diziam “eu te amo”. Não precisavam dizer nada disso mesmo. A cumplicidade permite essas coisas de nunca precisar falar do que se sente. É só sentir. Sentir não precisa de palavras. A dúvida precisa. Mas não havia dúvidas. Porque o sentir junto é telepático.
"Deixa eu pentear seu cabelo?"
"Não, você não vai saber pentear meu cabelo."
"Vou sim, deixa?"
"Não, você vai embaraçar tudo e não vai virar nada."
"Ah! Deixa de ser ruim pra mim, vou fazer igualzinho você tá fazendo..."
Ser ruim... ser ruim não podia. Quando se gosta mesmo ser ruim não faz o menor sentido.
"Tá bom! Mas é pra fazer igualzinho eu tô fazendo."
Ela fazia a durona. Mas era mais maleável que ele. Mais tarde ele teve a certeza disso.
Semblante compassivo. Olhar compenetrado. Toque suave. Ele passava o pente tão suavemente que já tava dando nervoso. Ela nunca teve paciência pra muita delicadeza. Mas tinha sido tão enérgica que agora não podia se queixar. Ele continuava dedicado. Ela já tava quase pedindo pra parar. Quando ele soltou:
"Nena, quando você tiver velhinha, bem velhinha. Eu vou pentear o seu cabelo pra você ir pra igreja."
Eles se olharam.
Ele continuou até terminar.
Ela só sorriu.
O coração contraiu e ela sorriu.
Quando você estiver velhinha, bem velhinha...
Não deu tempo.
Mas quando ela estiver velhinha, bem velhinha. E alguém perguntar qual a maior declaração de amor que ela já ouviu. Talvez eu conte essa história.

(Pintura: Wladyslaw Slewinski - Woman brushing her hair)