Dividiu o cabelo em duas partes. Começou a pentear
de baixo pra cima, calmamente. Sempre teve cabelão. Um cabelo comprido,
ondulado, castanho avermelhado. Mas só dá pra perceber que é avermelhado quando
posto próximo a um cabelo castanho comum. A proximidade sempre revelando
coisas. Já tava tão comprido que nem fazia ondas mais, só uns cachos nas pontas
de vez em quando. Essa mania que cabelo tem de fazer o que quer e quando quer.
Sempre mostrando quem é que manda. E ela penteava. Sem pressa. Sentada no
colchão no chão. E ele a observava. Curioso.
Ele achava muito comprido. Talvez nem gostasse do
cabelo dela. Mas não reclamava. Ele não era do tipo que reclamava das coisas. Dava
idéias. Fazia comentários. Raros. Mas reclamar mesmo nunca reclamava de nada.
Não tinha cabeça pra isso. Só olhava muito pra ela, principalmente enquanto
conversavam. E conversavam muito. O tempo todo. Sobre tudo. Não se bajulavam.
Não eram dados a declarações de amor rasgadas. Raramente diziam “eu te amo”.
Não precisavam dizer nada disso mesmo. A cumplicidade permite essas coisas de
nunca precisar falar do que se sente. É só sentir. Sentir não precisa de
palavras. A dúvida precisa. Mas não havia dúvidas. Porque o sentir junto é
telepático.
"Deixa eu pentear seu cabelo?"
"Não, você não vai saber pentear meu
cabelo."
"Vou sim, deixa?"
"Não, você vai embaraçar tudo e não vai virar
nada."
"Ah! Deixa de ser ruim pra mim, vou fazer
igualzinho você tá fazendo..."
Ser ruim... ser ruim não podia. Quando se gosta
mesmo ser ruim não faz o menor sentido.
"Tá bom! Mas é pra fazer igualzinho eu tô
fazendo."
Ela fazia a durona. Mas era mais maleável que ele.
Mais tarde ele teve a certeza disso.
Semblante compassivo. Olhar compenetrado. Toque
suave. Ele passava o pente tão suavemente que já tava dando nervoso. Ela nunca
teve paciência pra muita delicadeza. Mas tinha sido tão enérgica que agora não
podia se queixar. Ele continuava dedicado. Ela já tava quase pedindo pra parar.
Quando ele soltou:
"Nena, quando você tiver velhinha, bem
velhinha. Eu vou pentear o seu cabelo pra você ir pra igreja."
Eles se olharam.
Ele continuou até terminar.
Ela só sorriu.
O coração contraiu e ela sorriu.
Quando você estiver velhinha, bem velhinha...
Não deu tempo.
Mas quando ela estiver velhinha, bem velhinha. E
alguém perguntar qual a maior declaração de amor que ela já ouviu. Talvez eu
conte essa história.
(Pintura:
Wladyslaw Slewinski - Woman brushing her hair)