terça-feira, 14 de agosto de 2012

Piscininha


De repente, ela parou e uniu as mãos, fazendo a pose do Tio Patinhas, com aquela cara meio de doida meio de feliz da vida, que ela faz quando está brincando, e disse em tom jocoso, pela milésima vez:
__ Repete comigo: Eu Sou Uma Piscininha!
E ele repetiu.
Ela teve um breve segundo de hesitação.
Ele repetiu? Como assim ele repetiu? 

Ele nunca havia repetido antes.
Mas aquele era um dia diferente.
As diferenças haviam sido postas de lado.
Era um novo começo.
Então ela mergulhou. De cabeça. Pra nunca voltar.
Ela mergulhou sobre ele. Ali. Deitado na cama sorrindo.
Eles rolaram e se entrelaçaram rindo. Aos beijos. Dizendo coisas que nunca se lembrarão.

E aquele foi o dia mais feliz de todos.
Eu acho.

quarta-feira, 1 de agosto de 2012

Uma dança




Eu tava tão arrependida de ter topado ir àquela festa que ia ao banheiro de cinco em cinco minutos. 
Tinha hora que chegava no banheiro e nem sabia o que tinha ido fazer lá. Igual quando a gente tá numa noite de tédio em casa e toda hora abre a geladeira, olha lá dentro e fecha sem nem saber por que abriu. 
Assim tava eu quando saí daquele banheiro pela milésima vez e ouvi tocar Michael Bublè e foi como se o sol tivesse se aberto. 
Song for you versão ao vivo, não podia pedir mais nada pra Deus depois daquilo, tava em dívida com o cosmos. 
Atravessando o salão em direção a mesa, risonha e límpida, cantarolando junto com a música, esbarrei em alguém. 
Não dei a mínima, tava tão distraída. 
Eu ia pra esquerda, ele também, eu ia pra direita, ele também. 
Parei. 
Olhei pra cima. 
Bem pra cima, aliás. 
Esbocei um sorriso quando senti uma mão pesar na minha cintura e aquela face indecifrável se aproximar e soltar uma voz tão pesada quanto a mão, grave, meio arrastada: "você gosta dessa música?"
"Gosto." Respondi despreocupada. 
"Então dança ela comigo?"
Era o moço da gravata borboleta desfeita que tanto tavam comentando no banheiro de uma outra vez que estive lá. 
O solteiro cobiçado da festa. 
Toda festa tem um solteiro cobiçado, e ele era a bola da vez. 
Com sérios motivos pra isso. 
Tentei considerar o fato de não saber dançar. 
Tentei pensar que dançar com ele era comprar uma briga com metade das solteiras desesperadas por um bom partido daquela festa, ou do mundo. 
Mas eu simplesmente não podia dizer um não praquele cara. 
Nem que fosse pra pisar nos pés dele. 
Nem que fosse pra perder uns dentes na saída da festa, tomar cotovelada no banheiro. 
Eu tinha que dançar com ele. 
Por mim.
Não disse que sim, só deixei ele me levar e no caminho fiquei pensando: "na onde que um cara desses entra numas de dançar comigo? Tem alguma coisa muito errada aqui."
Ele era tão lindo, mas tão lindo, que destoava do resto. 
Não do resto da festa, do resto da humanidade. 
Por Deus! Eu não sabia onde começavam ou onde acabavam aqueles ombros. 
Aqueles ombros pareciam toda uma imensidão onde desaguavam meus braços nus, que procuravam conforto, e o achavam tolerantes. 
Ele era toda uma complacência. 
Aqueles olhos pequenos de foco profundo não olhavam pros lados enquanto dançávamos. Ele olhava pra mim. E eu pra ele. Só tinha a gente ali. Ele sabia fazer só existir a gente ali como ninguém seria capaz de fazer, eu sei.
O cabelo penteado pra trás assentado na nuca fazendo umas ondas, não era loiro, não era moreno. A barba feita de ontem, ameaçava roçar meu rosto que dizia sim. A boca pequena, lábios superiores finos, mas desenhados, lábios inferiores proeminentes, dentes perfeitos. Nariz pequeno, arrebitado, sobrancelhas grossas, cílios longos, testa quadrada, queixo definido, maxilar marcado. A perfeição em pessoa. 
E eu decidi que já que aquilo nunca mais ia me acontecer na vida: dançar com um homem lindo ao som da voz maravilhosa de Michael Bublè. Eu estava convencida de que iria xavecar aquele cara. Afinal, quem precisa de dignidade quando você tem diante de si o cara mais lindo de toda a criação enumerável e provavelmente nunca mais irá vê-lo na vida?
Mas como? 
Como fazer aquilo sem parecer vulgar? 
Sem correr o risco de dizer tudo o que ele já ouviu? 
Eu não podia dizer tudo aquilo que já foi dito. Ele nunca mais iria me ver e eu queria que ele se lembrasse de mim. 
Como dizia a música: when my life is over remember when we were together… we were alone and I was singing my song for you...
Era aquilo! 
Comecei a cantar aquela música pra ele. 
Olhos grudados nele, com a voz mais suave, meiga e melodiosa que eu era capaz de fazer sem um retorno decente. 
Ele tava curtindo. Me segurou mais firme. Era agora. Eu ia soltar uma cantada. Todas as frases mais absurdas já pululavam na minha mente. Eu ia soltar uma asneira. E tinha que ser das grandes. Precisava fazê-lo rir. Uma cantada e uma gargalhada. O riso distrai. Torna tudo mais leve. A estupidez aceitável, ou algo assim.
"Você é tão lindo que chega a dar vergonha. Na verdade eu te odeio. Era pra eu ser uma menina bonita nessa festa e vem você e me convida pra dançar, agora eu pareço a coisa mais tosca do mundo. Posso ver todos comentando: como pode esse cara estar dançando com essa mina sem graça? Junto de você até a Gisele Bündchen pareceria tosca. Você deveria pedir perdão pras pessoas por ridicularizá-las com sua presença. Você deveria pedir perdão pro mundo por destruir a auto-estima dos outros."
Ele tava achando graça naquilo. 
Quanto mais besteira eu falava mais forte ele me segurava. 
E eu tava quase fazendo sinal pro DJ e sussurrando: calcinha preta! 
Eu não faço a menor idéia de como se dança forró, só sei que rola um lance de encoxar um ao outro, e eu deixava aquele sujeito me encoxar, fácil! 
Mas a música tava quase acabando e eu decidi falar algumas coisas inteligentes só pra fazer média.
Caprichei no vocabulário. Nada como uma meia dúzia de palavras rebuscadas pra deixar um homem impressionado. 
E enquanto ele tecia alguns elogios a cerca do meu senso de humor, meu nome bonito e minha personalidade forte, essas coisas que homem gosta de elogiar. Eu que não tenho a menor paciência pra elogios, passeei o olhar pelo salão inquieta, e cruzei os olhos com os olhos de quem me observava do canto do salão. 
E tudo acabou.
Ele disse que não sabia se ia. Talvez não conseguisse folga no trampo. Mas ele foi. Tava ali, vendo tudo. 
Eu dançar com o cara mais lindo do mundo. 
Que naquele instante já nem mais existia pra mim. 
Meu coração disparou como quando o MSN ergue a janelinha anunciando que ele acabou de entrar. 
E era você. Só você. Mais aquele maldito cigarro que você empunhava, e que seria aceso segundos depois que você se virasse e atingisse o lado externo do salão. Algo que eu não poderia impedir. E eu nunca consigo impedir. Nada. Mas talvez eu conseguisse me desvencilhar daquela situação e alcançar você. Se eu corresse o bastante. Se eu conseguisse ao menos andar depois de te ver, ali, de olhos baixos me olhando como que me pedindo desculpa por não ser tão bom quanto ele. 
Sem saber que você era o suficiente pra mim. 
E as merdas que você fazia da vida já nem tinham mais importância. 
Eu só pensava em te alcançar.


(Fotografia: Marcello Mastroianni e Anita Ekberg em La Dolce Vita de Federico Fellini)




domingo, 29 de julho de 2012

Cabelinho Crespo


Isso é história antiga, meio que já virou lenda, como todas as histórias contadas por mim.
Tudo parece uma grande mentira. Mas não é. Juro.
Fui parar na cidade de Ponta Grossa. Era fim de ano, época de vestibular. Tava lá por isso. Ia tentar uma vaga na estadual, curso de jornalismo, sabe lá Deus por que.
Meu pai me hospeda numa pensão familiar para moças.
Cheguei na hora do almoço que prontamente me foi servido.
Viro o arroz de um lado pro outro, ensaiando misturar com o feijão, quando de repente me deparo com um fio de cabelo: curto, grosso, enrolado.
Minha mente paralisa.
Retorno em segundos uns dois anos antes.
Eu, uma amiga e a tia dela. Nós na frente de um barzinho tomando uma cerveja. Era verão. A tia da minha amiga era hilária, contava sobre a pizza da nova pizzaria da cidade:
"Cheguei em casa e a pizza estava em cima da mesa, minha mãe me avisa: ninguém teve coragem de comer da pizza."
"Como assim ninguém teve coragem? O que tem a pizza?"
"Tem um fio de cabelo liso enorme no meio da pizza. Um nojo!"
"Mas que bobagem, nojo de cabelo, comprido ainda, se fosse curtinho, grosso e enroladinho ainda vá lá!"
Aquela história nunca saiu da minha cabeça. Concordei plenamente. Curto e enroladinho sim, seria o fim.
E era justamente aquilo que me deparava naquele momento.
E agora? O que fazer?
Foi quando me veio a luz: tem que ter uma negrinha nessa casa, pelamor de Deus!
Procurei desesperadamente com os olhos aquele ser que salvaria meu almoço.
Quando escuto a voz da dona da casa dizendo: Esta é fulana, meu braço direito.
Suspiro de alívio.
A fulana era uma mulatinha de cabelo crespo e bem curtinho, vinha fardada com um avental de cozinha.
Não, não era só o braço direito dos donos da pensão, alguns dias naquele lugar percebi que ela era o esquerdo também. Uma escrava alforriada, que permanece dormindo na dispensa por não ter pra onde ir. Os donos fingem que criaram como filha, mas se bobear não sabe ler nem escrever. No fim dos dias eu já tava quase me juntando com as amigas que fiz ali pra uma revolta por aquela pobre alma sem perspectiva de vida.
Sentimentos revolucionários a parte. Sorri condescendente para aquele cabelinho, retirei-o do meu prato e comi satisfeita meu almoço. Era curto, grosso e enroladinho. Mas era da cabeça da mulatinha. Benza Deus!

(Pintura: Di Cavalcanti - Mulata em rua vermelha)

sábado, 28 de julho de 2012

A maior declaração de amor


Dividiu o cabelo em duas partes. Começou a pentear de baixo pra cima, calmamente. Sempre teve cabelão. Um cabelo comprido, ondulado, castanho avermelhado. Mas só dá pra perceber que é avermelhado quando posto próximo a um cabelo castanho comum. A proximidade sempre revelando coisas. Já tava tão comprido que nem fazia ondas mais, só uns cachos nas pontas de vez em quando. Essa mania que cabelo tem de fazer o que quer e quando quer. Sempre mostrando quem é que manda. E ela penteava. Sem pressa. Sentada no colchão no chão. E ele a observava. Curioso.
Ele achava muito comprido. Talvez nem gostasse do cabelo dela. Mas não reclamava. Ele não era do tipo que reclamava das coisas. Dava idéias. Fazia comentários. Raros. Mas reclamar mesmo nunca reclamava de nada. Não tinha cabeça pra isso. Só olhava muito pra ela, principalmente enquanto conversavam. E conversavam muito. O tempo todo. Sobre tudo. Não se bajulavam. Não eram dados a declarações de amor rasgadas. Raramente diziam “eu te amo”. Não precisavam dizer nada disso mesmo. A cumplicidade permite essas coisas de nunca precisar falar do que se sente. É só sentir. Sentir não precisa de palavras. A dúvida precisa. Mas não havia dúvidas. Porque o sentir junto é telepático.
"Deixa eu pentear seu cabelo?"
"Não, você não vai saber pentear meu cabelo."
"Vou sim, deixa?"
"Não, você vai embaraçar tudo e não vai virar nada."
"Ah! Deixa de ser ruim pra mim, vou fazer igualzinho você tá fazendo..."
Ser ruim... ser ruim não podia. Quando se gosta mesmo ser ruim não faz o menor sentido.
"Tá bom! Mas é pra fazer igualzinho eu tô fazendo."
Ela fazia a durona. Mas era mais maleável que ele. Mais tarde ele teve a certeza disso.
Semblante compassivo. Olhar compenetrado. Toque suave. Ele passava o pente tão suavemente que já tava dando nervoso. Ela nunca teve paciência pra muita delicadeza. Mas tinha sido tão enérgica que agora não podia se queixar. Ele continuava dedicado. Ela já tava quase pedindo pra parar. Quando ele soltou:
"Nena, quando você tiver velhinha, bem velhinha. Eu vou pentear o seu cabelo pra você ir pra igreja."
Eles se olharam.
Ele continuou até terminar.
Ela só sorriu.
O coração contraiu e ela sorriu.
Quando você estiver velhinha, bem velhinha...
Não deu tempo.
Mas quando ela estiver velhinha, bem velhinha. E alguém perguntar qual a maior declaração de amor que ela já ouviu. Talvez eu conte essa história.

(Pintura: Wladyslaw Slewinski - Woman brushing her hair)