De repente, ela parou e uniu as mãos, fazendo a
pose do Tio Patinhas, com aquela cara meio de doida meio de feliz da vida, que
ela faz quando está brincando, e disse em tom jocoso, pela milésima vez:
__ Repete comigo: Eu Sou Uma Piscininha!
E ele repetiu. Ela teve um breve segundo de hesitação.
Ele repetiu? Como assim ele repetiu?
Ele nunca havia repetido antes. Mas aquele era um dia diferente.
As diferenças haviam sido postas de lado.
Era um novo começo.
Então ela mergulhou. De cabeça. Pra nunca voltar.
Ela mergulhou sobre ele. Ali. Deitado na cama sorrindo.
Eles rolaram e se entrelaçaram rindo. Aos beijos. Dizendo coisas que nunca se
lembrarão.
Eu tava tão arrependida de ter topado ir àquela
festa que ia ao banheiro de cinco em cinco minutos.
Tinha hora que chegava no
banheiro e nem sabia o que tinha ido fazer lá. Igual quando a gente tá numa
noite de tédio em casa e toda hora abre a geladeira, olha lá dentro e fecha sem
nem saber por que abriu.
Assim tava eu quando saí daquele banheiro pela
milésima vez e ouvi tocar Michael Bublè e foi como se o sol tivesse se aberto.
Song for you versão ao vivo, não podia pedir mais nada pra Deus depois daquilo,
tava em dívida com o cosmos.
Atravessando o salão em direção a mesa, risonha e
límpida, cantarolando junto com a música, esbarrei em alguém.
Não dei a mínima,
tava tão distraída.
Eu ia pra esquerda, ele também, eu ia pra direita, ele
também.
Parei.
Olhei pra cima.
Bem pra cima, aliás.
Esbocei um sorriso quando
senti uma mão pesar na minha cintura e aquela face indecifrável se aproximar e
soltar uma voz tão pesada quanto a mão, grave, meio arrastada: "você gosta dessa
música?"
"Gosto." Respondi despreocupada.
"Então dança ela comigo?"
Era o moço da
gravata borboleta desfeita que tanto tavam comentando no banheiro de uma outra
vez que estive lá.
O solteiro cobiçado da festa.
Toda festa tem um solteiro
cobiçado, e ele era a bola da vez.
Com sérios motivos pra isso.
Tentei
considerar o fato de não saber dançar.
Tentei pensar que dançar com ele era
comprar uma briga com metade das solteiras desesperadas por um bom partido
daquela festa, ou do mundo.
Mas eu simplesmente não podia dizer um não praquele
cara.
Nem que fosse pra pisar nos pés dele.
Nem que fosse pra perder uns dentes
na saída da festa, tomar cotovelada no banheiro.
Eu tinha que dançar com ele.
Por mim.
Não disse que sim, só deixei ele me levar e no
caminho fiquei pensando: "na onde que um cara desses entra numas de dançar
comigo? Tem alguma coisa muito errada aqui."
Ele era tão lindo, mas tão lindo,
que destoava do resto.
Não do resto da festa, do resto da humanidade.
Por Deus!
Eu não sabia onde começavam ou onde acabavam aqueles ombros.
Aqueles ombros
pareciam toda uma imensidão onde desaguavam meus braços nus, que procuravam
conforto, e o achavam tolerantes.
Ele era toda uma complacência.
Aqueles olhos
pequenos de foco profundo não olhavam pros lados enquanto dançávamos. Ele
olhava pra mim. E eu pra ele. Só tinha a gente ali. Ele sabia fazer só existir
a gente ali como ninguém seria capaz de fazer, eu sei.
O cabelo
penteado pra trás assentado na nuca fazendo umas ondas, não era loiro, não era
moreno. A barba feita de ontem, ameaçava roçar meu rosto que dizia sim. A boca
pequena, lábios superiores finos, mas desenhados, lábios inferiores
proeminentes, dentes perfeitos. Nariz pequeno, arrebitado, sobrancelhas
grossas, cílios longos, testa quadrada, queixo definido, maxilar marcado. A
perfeição em pessoa.
E eu decidi que já que aquilo nunca mais ia me acontecer
na vida: dançar com um homem lindo ao som da voz maravilhosa de Michael Bublè.
Eu estava convencida de que iria xavecar aquele cara. Afinal, quem precisa de
dignidade quando você tem diante de si o cara mais lindo de toda a criação
enumerável e provavelmente nunca mais irá vê-lo na vida?
Mas como?
Como fazer aquilo sem parecer vulgar?
Sem correr o risco de dizer tudo o que ele já ouviu?
Eu não podia dizer tudo
aquilo que já foi dito. Ele nunca mais iria me ver e eu queria que ele se
lembrasse de mim.
Como dizia
a música: when my life is over remember when we were together… we were alone
and I was singing my song for you...
Era aquilo!
Comecei a cantar aquela música pra
ele.
Olhos grudados nele, com a voz mais suave, meiga e melodiosa que eu era
capaz de fazer sem um retorno decente.
Ele tava curtindo. Me segurou mais
firme. Era agora. Eu ia soltar uma cantada. Todas as frases mais absurdas já
pululavam na minha mente. Eu ia soltar uma asneira. E tinha que ser das
grandes. Precisava fazê-lo rir. Uma cantada e uma gargalhada. O riso distrai.
Torna tudo mais leve. A estupidez aceitável, ou algo assim.
"Você é tão lindo que chega a dar vergonha. Na
verdade eu te odeio. Era pra eu ser uma menina bonita nessa festa e vem você e
me convida pra dançar, agora eu pareço a coisa mais tosca do mundo. Posso ver
todos comentando: como pode esse cara estar dançando com essa mina sem graça?
Junto de você até a Gisele Bündchen pareceria tosca. Você deveria pedir perdão
pras pessoas por ridicularizá-las com sua presença. Você deveria pedir perdão
pro mundo por destruir a auto-estima dos outros."
Ele tava achando graça naquilo.
Quanto mais
besteira eu falava mais forte ele me segurava.
E eu tava quase fazendo sinal
pro DJ e sussurrando: calcinha preta!
Eu não faço a menor idéia de como se
dança forró, só sei que rola um lance de encoxar um ao outro, e eu deixava
aquele sujeito me encoxar, fácil!
Mas a música tava quase acabando e eu decidi
falar algumas coisas inteligentes só pra fazer média.
Caprichei no vocabulário.
Nada como uma meia dúzia de palavras rebuscadas pra deixar um homem
impressionado.
E enquanto ele tecia alguns elogios a cerca do meu senso de
humor, meu nome bonito e minha personalidade forte, essas coisas que homem
gosta de elogiar. Eu que não tenho a menor paciência pra elogios, passeei o
olhar pelo salão inquieta, e cruzei os olhos com os olhos de quem me observava
do canto do salão.
E tudo acabou.
Ele disse que não sabia se ia. Talvez não
conseguisse folga no trampo. Mas ele foi. Tava ali, vendo tudo.
Eu dançar com o
cara mais lindo do mundo.
Que naquele instante já nem mais existia pra mim.
Meu
coração disparou como quando o MSN ergue a janelinha anunciando que ele acabou
de entrar.
E era você. Só você. Mais aquele maldito cigarro que você empunhava,
e que seria aceso segundos depois que você se virasse e atingisse o lado
externo do salão. Algo que eu não poderia impedir. E eu nunca consigo impedir.
Nada. Mas talvez eu conseguisse me desvencilhar daquela situação e alcançar
você. Se eu corresse o bastante. Se eu conseguisse ao menos andar depois de te
ver, ali, de olhos baixos me olhando como que me pedindo desculpa por não ser
tão bom quanto ele.
Sem saber que você era o suficiente pra mim.
E as merdas
que você fazia da vida já nem tinham mais importância.
Eu só pensava em te
alcançar.
(Fotografia: Marcello Mastroianni e Anita Ekberg em La Dolce Vita de
Federico Fellini)